PARTE 1- A NECESSÁRIA DESCONSTRUÇÃO DE MITOS.
por Cleide Magáli dos Santos
(Cientista Social, Profa. UNEB, UFBA)
Palavras iniciais…
Ânimos acirrados?…nem tanto! A impressão que eu tenho, é que uma legislação cruel será tranquilamente aprovada e só depois a “ficha cairá” para a maioria da população brasileira.
Antes de qualquer coisa, se faz necessário refletir no bojo da questão da redução da maioridade penal, o quanto não se garantem os direitos dessa parcela da população – direitos promulgados pela Constituição vigente no país e em legislação própria como o Estatuto da Criança e do Adolescente, como assistência integral…que significa dizer educação, saúde, lazer etc.
Infelizmente, os mesmos que não cumprem a Lei (que neste caso, não são as crianças e nem os adolescentes) se arvoram na defesa da redução da maioridade penal. Rápidos no gatilho para a punição, numa atitude eleitoreira , mais para atender um aumento imediato dos anseios de uma população movida Medo Social (Baierl) e pelo sentimento de Risco (Luhmann; O’ Malley; Garland; Bauman; Beck), jogando assim, com um imaginário social que precisa e deve ser compreendido e debatido e…menos, no caminho da solução de problemas.
No frigir dos ovos, não evitaremos problema algum e, ainda acirraremos os já existentes, uma vez que, no Brasil, as ditas instituições para adultos não socializam para um convívio saudável em sociedade e as instituições para adolescentes ainda não cumprem o ciclo completo previsto pelo SINASE. Quero discutir a redução da maioridade penal, sim…mas, com todas as cartas na mesa.
1- Os mitos em torno da questão da relação juventude e criminalidade: o imaginário social
Volpi (2002) ressaltou a inconsistência de fundamento para existência de três mitos que permeiam o imaginário da população brasileira frente à questão da inclinação da juventude como agente de violência.
O primeiro mito, se refere ao hiperdimensionamento do problema, causado principalmente pelas informações transmitidas pela mídia, entretanto, mesmo com o número crescente de adolescentes que cometem atos infracionais, este número ainda é bastante inferior à quantidade de adultos que praticam os mesmos atos. A partir desta constatação, é um equivoco dizer que os adolescentes são os principais protagonistas da insegurança que se propaga na sociedade brasileira contemporânea, haja vista, por exemplo, a quantidade de adultos envolvidos ser bem maior que a quantidade de adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa.
O segundo mito, faz referência à periculosidade do adolescente que muitas vezes é destacada a partir da divulgação de casos esporádicos de adolescentes que praticaram crimes hediondos. Por isso, como afirma Carrano (2000) é preciso sair da armadilha cultural e política daqueles que só enxergam delinquência e violência nos grupos da juventude, isto porque classificaram a juventude também como o lugar da violência, uma percepção que nasceu de um discurso dominante de negação do diferente e daquilo que está fora das suas formas de alienação e dominação como a cultura juvenil.
Por fim, o terceiro mito alude à inverídica irresponsabilidade penal, uma vez que há uma grande confusão entre impunidade e inimputabilidade. Essa confusão, por sua vez, acarreta uma falsa ideia de que o adolescente não é responsabilizado pelos seus atos juridicamente ilícitos e que este seria o motivo que o impulsiona ao cometimento de mais delitos, já que “não respondem” por seus atos. No entanto, no caso de adolescentes (12 a 18 anos), o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA- Lei nº 8069/90) prevê a adoção de medidas socioeducativas – de caráter penal especial – expressas no artigo 112, tais como: I- advertência; II- obrigação de reparar os danos; III- prestação de serviço à comunidade; IV- liberdade assistida; V-semiliberdade; VI- internação.[1]
Assim sendo, a atenção aos adolescentes em conflito com a lei, deve ser muito mais ampla que a simples repressão aos atos infracionais, tratando-se de uma política de caráter pedagógico que objetiva melhorar sua relação com o coletivo e seu desenvolvimento pessoal.
Para o enfrentamento desse contexto, o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA) através da Resolução Nº 119/2006, aprovou o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE) que se apresenta como um conjunto ordenado de princípios, regras e critérios, de caráter jurídico, político, pedagógico, financeiro e administrativo, que envolve desde o processo de apuração de ato infracional até a execução de medida socioeducativa.
O SINASE reafirma a diretriz do ECA, sobre a natureza pedagógica da medida socioeducativa, que segundo seu paradigma, pedagogicamente, significa a educação para o convívio social sem a quebra das normas dessa convivência .
Vale ressaltar que o sistema de proteção e ressocialização somente se concretiza através de uma rede de operadores ou como a prevê o SINASE, através de uma Comunidade Socioeducativa. Quanto aos profissionais que atuem nessa Comunidade – no caso específico do trabalho com adolescentes em situação de conflito com a lei – devem possuir um entendimento e uma visão crítica em relação a uma situação que é inacessível ao leigo.
2-Uma brevíssima história das mudanças de paradigmas nas politicas publicas brasileiras
2. 1 Por dentro da crueldade das legislações.
No primeiro Código Penal Republicano do Brasil (1890), os menores de 9 anos eram absolutamente inimputáveis, bem como os menores entre 9 e 14 anos que agissem sem discernimento. Todavia, os menores entre 9 e 14 anos que agissem com discernimento eram imputáveis e eram internados em estabelecimentos correcionais disciplinares, até a idade 17 anos. Os maiores de 14 anos e menores de 16 anos eram imputáveis com penas atenuadas. Nesta ocasião predomina então, a Teoria da Ação com Discernimento.
A alteração e substituição da concepção de discernimento, veio com o primeiro Código de Menores do Brasil de 1927 (Código Mello Mattos) através do qual, a criança passou de objeto de caridade a objeto de políticas públicas. Ainda eram vistos como não criminosos, os sujeitos, de até 14 anos de idade e também se preceituava que os menores de 18 anos abandonados e delinquentes deveriam ser submetidos ao regime de recolhimento em instituições.
Foi somente com o Decreto-Lei no. 2.848 de 07/12/1940, que a idade de 18 anos foi fixada como marca que separava a inimputabilidade da responsabilidade penal. O infrator era aquele que transgredia alguma lei tipificada no Código Penal e, ao cometer o ato infracional, estava sujeito a uma sanção também prevista no Sistema Legal, aplicada por um Juiz ou um seu representante, devendo ser internado em unidades especiais. No ano de 1942 foi criado o Serviço de Assistência ao Menor (SAM), dentro da estrutura do Ministério da Justiça, funcionando como um sistema penitenciário para menores de idade.
Os anos 50, não trouxeram nenhuma novidade no tocante as crianças e adolescentes no contexto aqui abordado.
A década de 60 marcou o Brasil, pelo fechamento político do regime militar com o golpe de 1964, que chegaria a seu ápice em 1968 com a instauração do AI-5. E, foi nesse contexto turbulento, que em 1964, criou-se a Lei 4513/64 que estabeleceu a Programa Nacional do Bem-Estar do Menor (PNBEM) e se criou a Fundação Nacional do Bem Estar do Menor (FUNABEM) que seguiu a linha pedagógica de internação do antigo SAM, acrescentando-se ainda o apoio doutrinário e logístico da Escola Superior de Guerra (ESG), através de sua Doutrina de Segurança Nacional. Ainda nessa conjuntura, a Constituição Federal de 1967, ao instituir a assistência ao universo infanto-juvenil, determinou duas modificações específicas: (i) referente à idade mínima para a iniciação ao trabalho, que passou a ser de 12 anos e (ii) instituindo o ensino obrigatório e gratuito nos estabelecimentos oficiais para as crianças de 7 a 14 anos de idade (art 168, inc II).
A década de 70 chegou e a sociedade brasileira vivia o período mais duro da ditadura militar, acenando-se uma profunda crise econômica. Em 1979, foi instituído um “novo” Código de Menores (Lei 6697 de 10/10/1979) que definia a proteção e a vigilância aos menores em “situação irregular” (dentre outros, os menores em estado de necessidade, que por incapacidade dos pais para mantê-los, passavam a ser objeto de interação do Sistema Administrativo da Justiça de Menores). Assim, nesse Código, por um único conjunto de medidas se definiu o atendimento ao menor carente, ao menor abandonado e ao menor infrator. Todas as crianças e jovens tidos como em perigo ou perigosos eram passíveis, de serem enviados às instituições de recolhimento. Na prática isto significava que o Estado podia, através do Juiz de Menor, destituir o pátrio poder através da decretação de sentença de “situação irregular do menor”.
Ainda em meados dos anos 70, a FUNABEM passou a trabalhar com crianças e adolescentes em situação de risco pessoal e social em comunidades de origem, surgindo assim, o Plano de Integração do Menor/Comunidade (PLIMEC) que foi implantado no país através de núcleos preventivos. Estabeleceu-se uma condução vertical e centralizada, com padrões uniformes de atendimento direto normatizado para todos os Estados do país, tendo como órgão nacional a FUNABEM que se desdobrou em unidade denominada Fundação Estadual do Bem-Estar ao Menor (FEBEM) como órgão executor de uma uniformidade de conteúdo, método e gestão que propunham substituir o modelo até então vigente, o SAM, considerado repressivo. No entanto, mais uma vez a padronização e o verticalismo condenaram a proposta ao insucesso e mais ainda, as FEBENS – a FEBEM em cada local- foram consideradas por muitos, como uma “modernização conservadora” .
Vale destacar que, já na segunda metade dos anos 70, a institucionalização definida pelo PNBEM e pelo Código de Menores começou a sofrer críticas por parte de especialistas e por defensores dos Direitos Humanos. Avaliava-se como perverso e ineficaz o ciclo promovido pelas instituições (apreensão–triagem-rotulação-deportação-confrontamento).
A década de 80 se caracterizou pela continuidade do processo de abertura política no país e seguiram-se mobilizações da sociedade em torno de diversas questões, como por exemplo, a realização em 1984, em Brasília, do I Seminário Latino Americano de Alternativas Comunitárias de Atendimento a Menores de Rua, fortalecendo a idéia de atendimento alternativo como critica ao modelo correcional-repressivo; a composição em 1985, da Coordenação Nacional do Movimento Meninos e Meninas de Rua e a realização em 1986, também em Brasília, do I Encontro Nacional de Meninos e Meninas de Rua.
Nos anos 80, do mesmo modo, no mundo acadêmico surgiram aportes que discutiram à situação das crianças e adolescentes, sinalizando o caminhar para uma doutrina de proteção mais integral – como exemplo, cita-se aqui, o artigo denominado “A Fabricação do Menor” (1987), no qual Faleiros fez uma veemente critica a Doutrina da Situação Irregular.
Nesse contexto de mobilização popular, em 1985 foi instalada a Comissão de Estudos Constitucionais que produziria o texto da Constituição Brasileira em 1988 – denominada de Constituição Cidadã. Essa Constituição, ainda hoje em vigência, garante em seu texto, a iniciativa popular como iniciadora de processos legislativos (art. 14) e na tomada de decisões sobre políticas públicas. Aqui, com todas as criticas possíveis quanto à efetividade dessa participação, vale ressaltar que a Constituição de 1988 significou um grande avanço nos direitos sociais, beneficiando a criança e o adolescente. Nessa perspectiva, tem-se, exemplarmente, que a idade mínima para admissão ao trabalho é, novamente, fixada aos 14 anos (art. 7º, XXXIII) e quanto à educação, a referida Carta Magna, determina como dever do Estado garantir o ensino fundamental, obrigatório e gratuito, até mesmo para os que a ele não tiverem acesso na idade própria (art. 208). Destarte em 1989, depois da promulgação da Constituição, foi aprovada a Convenção Internacional dos Direitos da Criança, da qual o Brasil tornou-se signatário.
Posteriormente, aprovou-se no Congresso Nacional, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) em 22/08/1990. Sua promulgação constituiu mudanças no ordenamento jurídico, como um marco de um período inconcluso de transformações efetivas na realidade do atendimento ao adolescente em conflito com a lei, pautadas em novas exigibilidades aos gestores públicos das medidas socioeducativas, fundadas no reconhecimento da criança e do adolescente como pessoas sujeitas de direitos e que ganharam impulso com a redação do documento oficial do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE).
Obviamente, vale ressaltar que numa discussão mais ampla, certamente todo esse denominado avanço poderia ser debatido à luz da existência da tensão entre facticidade e validade no Estado de Direito, conforme já ressaltou Jünger Habermas (2003).
2.2 Uma esperança: o SINASE e a ideia de Comunidade Socioeducativa.
Em fevereiro de 2004 a Secretaria Especial dos Direitos Humanos (SEDH) por meio da Subsecretaria Especial de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente (SPDCA), em conjunto com a CONANDA e com apoio do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), sistematizaram e organizaram a proposta do SINASE.
Em junho de 2006, o SINASE foi aprovado em assembléia do CONANDA.
O documento foi organizado em nove capítulos, a saber: marco situacional; conceito de integração das políticas públicas; princípios e marco legal; organização do sistema; gestão dos programas; parâmetros da gestão pedagógica no atendimento a socioeducativo; parâmetros arquitetônicos para os programas socioeducativo; gestão do sistema e financiamento e monitoramento e avaliação. Logo, o SINASE avançou ao definir diretrizes no que concerne a: Estrutura organizacional do Sistema; Gestão dos programas; Gestão pedagógica; Padrões arquitetônicos das unidades de atendimento; Financiamento; Monitoramento e Avaliação.
Assim, o SINASE articula os três níveis de governo (Federal, Estadual e Municipal) para o desenvolvimento dos programas de atendimento, considerando a intersetorialidade e a co-responsabilidade da família, comunidade e Estado. Estabelece ainda, as competências e responsabilidades dos Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente; que devem sempre fundamentar suas decisões com os demais integrantes do sistema de garantia de direitos (Poder Judiciário e o Ministério Público).
Segundo o SINASE, para a efetivação da ideia de comunidade socioeducativa é fundamental a formação de uma equipe com diferentes papeis e um único objetivo. O quadro de pessoal pode variar conforme o tipo de ação, a saber: específico para entidades e/ou programas que executam a medida socioeducativa de prestação de serviço à comunidade; específico para entidades e/ou programas que executam a medida socioeducativa de liberdade assistida; específico para entidades e/ou programas que executam a medida socioeducativa de semiliberdade e específico para entidades e/ou programas que executam a medida socioeducativa de internação.
Considerações por momento…
Enfim, colocadas as primeiras cartas na mesa…proponho que sigamos com o debate.
Referências Bibliográficas
BAIERL, L. F. Medo Social: Da violência visível ao invisível da violência. São Paulo: Cortez, 2004.
BAUMAN, Zigmunt. Medo Líquido. Rio de Janeiro: Zahar Ed., 2008
BECK, Ulrich. Risk Society. Londres, Sages, 1992
CARRANO, P. Identidades Juvenis e Escola. In: Alfabetização e Cidadania, n. 10, novembro de 2000.
FALEIROS, Vicente de. A fabricação do menor. In: Revista Humanidades, n.12, p.5-17, Brasília, 1987.
GARLAND, D. The rise of risk in ERICSON, R.V, e DOYLE,A. Risk and Morality. Toronto: University of Toronto Press, 2003, pp.48-86.
HABERMAS, Jünger. Direito e Democracia, entre facticidade e validade, VOL.I.(trad. Flavio B Siebeneichler). Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003.
______. Direito e Democracia, entre facticidade e validade, vol. II.(trad. Flavio B Siebeneichler). Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003.
LUHMANN, Niklas. Sociología del Riesgo, México, Universidad Iberoamericana/ Universidad de Gualajara , 1992.
O’ MALLEY, P. Risk and responsibility In Barry, A., Osborne, T. and Rose, N. Foucault and political reason: liberalism, neo-liberalism and rationalities of government. Chicago: University of Chicago Press, 1966, pp.189-207
______(org.) Crime and the risk society. Aldershort: Darthmouth, 1998.
______. Discontinuity, government and risk. Theoretical Criminology. , vol. (5), 2001, pp. 85-92.
VOLPI, Mário (org) O adolescente e o ato infracional. São Paulo: Cortez, 2002
Documentos
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BAHIA. Governo do Estado da Bahia. Fundação da Criança e do Adolescente Processo Seletivo Simplificado. Edital Nº 02/2009
BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente -Lei nº 8069/90. Brasília, DF, 1990.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, 1988.
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BRASIL. Presidência da República. Secretaria Especial dos Direitos Humanos. Sistema nacional de atendimento socioeducativo (SINASE). Brasília: CONANDA, 2006.
[1] Além disso, visando assegurar os direitos da criança e do adolescente, para o ECA a criança (0 a 12 anos incompletos) – que também é de responsabilidade penal dos pais ou responsável – deverá ser encaminhada ao Conselho Tutelar, estando sujeita a medidas protetivas com intervenção administrativa no seio da família com medidas aplicáveis aos pais, que vão do encaminhamento a programas de auxilio a família, até a inclusão em programas de orientação e tratamento a alcoólatras e toxicômanos.